Artigo: "Eu disse não, não, não"

Chico Neto
Vinte e sete anos é medida rasa demais para demarcar o tempo de duração de uma vida. Menos para quem, como Amy Winehouse, já dissera, nos primeiros versos de Rehab, um de seus sucessos do segundo e último CD em vida: "Tentaram me mandar para a reabilitação e eu disse não, não, não". Mais que uma cantora, a jovem inglesa, encontrada morta em sua casa em Londres, era um furacão em forma de mulher. Intensa em tudo. Algo assim como Janis Joplin — que, a propósito, também deixou a vida em circunstâncias aparentemente semelhantes e com a mesma idade. Igualmente Curt Cobain e Jimi Hendrix saíram de cena aos 27 anos. Seria 27 um número fatídico para os doidões da música?

Inferências numerológicas, creio, não passam tão perto da questão, embora representem uma ligeira isca de tentativa de compreensão da história. Indo por essa linha, Janis Joplin nasceu no mesmo dia (19 de janeiro) em que Elis Regina morreu, embora a coincidência de datas seja assinalável apenas no mês. Em comum, todavia, existe uma história que envolve a relação com as drogas.

Conceituada revista de circulação nacional, quando Elis morreu, estampou a foto da cantora na capa com a manchete: "A tragédia da cocaína". Aos desavisados, deve ter parecido que Elis Regina era uma traficante que virou cantora por acaso. Sem amenizar, na galeria dos mortos por overdose, as trágicas circunstâncias em que tantos ídolos deixaram este mundo, o fato é que a música de Elis, de Janis Joplin e de Amy Winehouse é muito maior do que aspectos da vida pessoal delas.

Hoje é o dia da autópsia. Pelas tradição judaica — e Amy era judia, condição que independe da pouco palpável possibilidade de que ela tenha sido uma pessoa religiosa —, tal intervenção no corpo de alguém que já se foi somente é aceita quando se trata de exigência legal, o que vem a ser o caso. Mas, pelo princípio chamado de kavod hamet (honra do morto), tão logo passe pelo ritual da tahará (purificação), o corpo deve ser envolto em panos brancos e fechado dentro de um caixão, não mais devendo ser visto por ninguém. Se a família dela observará tais preceitos, pouco importa a esta altura. Mas as lembranças que temos de alguém que se foi deveriam estar centradas na pessoa viva, não em seu invólucro, já abandonado. Melhor lembrar do que vibrou.

É o que Amy nos deixa. Muito apropriadamente, no hit Back to black, ela afirma: "Nós apenas dissemos adeus com palavras". As palavras ficam por conta da mídia. É definitivamente uma lástima que uma cantora tão talentosa, com voz aprimorada que passeava com desenvoltura pelo soul revitalizado e flertava com elementos do rhytm’n’blues e do jazz — Amy era musicalmente apurada —, tenha ido embora tão cedo. Mas o que dela a gente vai guardar não é perecível como o tempo de validade de todos os exemplares da vida animal: é, sim, um acervo musical que nem precisou ser extenso para mostrar qualidade. Isso dura feito diamante.

A dor, porém, é implacável e, tal como na época da morte de Janis Joplin, Elis Regina, Jimi Hendrix, Curt Cobain, deixa órfã uma legião de apreciadores da boa música. O sábado amanheceu com um soco no estômago, deflagrado pela notícia de que a cantora britânica se foi. Nem importa se era uma tragédia anunciada, já que a conturbada relação de Amy com álcool e drogas não deixava dúvida de que sua trajetória seria abreviada. Gosto amargo, esse. É, Amy. Durante muito tempo, a menção do nome Amy Winehouse vai deixar muitos de nós com a sensação de back to black. Onde quer que você esteja, seu melhor está por aqui , com permanência ilimitada.

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